Desde
o início de nossas vidas somos convidados a lidar com frustrações e perdas. A
primeira frustração significante para um ser humano começa em seu primeiro
contato com o mundo, assim, diz-se que o abandono do ambiente aconchegante que
o ventre materno oferece, parece bastante doloroso para um recém-nascido. Com o
passar dos dias e ao longo de todo o desenvolvimento humano, torna-se
necessário o desenvolvimento de diferentes comportamentos que visem à adaptação
ao meio e esta adaptação muito provavelmente implicará em diferentes abdicações
e sofrimentos; torna-se necessário conhecer o modo de funcionamento do ambiente
em que se está inserido e agir em conformidade. Apenas com estas concepções
pode-se dizer que um indivíduo experimenta desde o começo da vida e por todos
os seus dias, experiências positivas e negativas, frustrações e conquistas. Assim como o nascimento está relacionado com a
certeza de vida, de crescimento e desenvolvimento, a ele se atrela a convicção
de que esta vida será finita. Pode-se dizer então, que desde o nascimento
começa-se a morrer, há um ponto de chegada comum a todos e o que diferencia são
os caminhos percorridos. Inicialmente esta colocação pode soar mórbida demais,
no entanto parecer ser bastante coerente quando entendida a trajetória da vida
e o ponto comum a todos os seres humanos.
E
o primeiro contato com a morte está na procura deste ponto comum: nascemos da
mesma forma e ninguém será eterno. É interessante compreender que a noção da
morte é extremamente idiossincrática, cada ser humano terá um contato diferente
e compreenderá esta finitude de uma forma. A noção de que nada é eterno começa
a ser desenvolvida desde cedo, nas primeiras experiências de uma criança. Diferentes
eventos colaboram para esta construção: a separação da mãe que permanecia a
maior parte do tempo próxima; a troca do ambiente familiar pelas primeiras
experiências escolares; a troca de amigos e de vínculos; o abandono da chupeta,
do paninho ou do objeto que lhe ofereceu segurança etc. A morte de um animal de
estimação, até a perda de um brinquedo ou falecimento de algum ente querido, são
acontecimentos que podem favorecer o primeiro contato com a finitude alheia, e
também a própria.
E
por mais que todos os eventos já citados sejam recorrentes na vida de quase
todos os indivíduos, essas experiências acontecem de forma muito particular, e todas
essas perdas devem ser interpretadas de forma diferente para cada indivíduo,
visto que o contexto e a realidade em que este fato ocorreu podem influenciar
diretamente nesta compreensão. A perda de um primeiro animal de estimação será
sentida de diferentes formas, por diferentes indivíduos, podendo significar
mais ou menos para um ou para o outro, a depender do tipo de relação que era
estabelecida com ele. O mesmo acontecerá com cada experiência de morte que um
indivíduo passará ao longo de sua vida, nenhuma delas será igual a outra, por
diferentes aspectos. Pode-se assim dizer, que nem toda perda é dolorosa e nem
toda morte será extremamente sentida. Portanto, torna-se extremamente
importante a compreensão da relação estabelecida entre os que ficam e os que
vão, para que o luto seja melhor compreendido.
Como
todo o fenômeno que permeia as relações humanas, a experiência de morte também
deve ser contextualizada. Entender como o indivíduo se relaciona com
frustrações e perdas possibilitam ferramentas que muito favorecem a compreensão
da ausência ou presença do sofrimento de quem perdeu alguém. Outro elemento importante
que favorece a compreensão deste fenômeno consiste no entendimento das
representações que o ser humano é capaz de devotar a alguém, figuras
idealizadas são típicas nas relações humanas e normalmente a perda destas
representações é o impulso para muito sofrimento.
Explorando
um pouco mais os elementos citados acima é preciso sinalizar que muitas
relações estão fundamentadas em alto grau de dependência entre ambas as partes,
e a morte de algum elemento desta relação, pode significar a perda de muitos
ganhos e o não acesso a muitas experiências positivas. Então, é extremamente
compreensível o sofrimento de um indivíduo que vive o luto de alguém que lhe
oferecia diversas vivências positivas e se tornou referência para a realização
de muitas coisas. Certamente quem sofre tem em si diferentes sentimentos como o
medo, a insegurança e a falta de repertório para continuar a se relacionar com
um mundo que anteriormente era visto somente sobre uma ótica. Normalmente a
falta de repertório assusta consideravelmente um indivíduo durante o luto, é
como se toda sua realidade tivesse que se adaptar a uma nova configuração, que
contará com a ausência de alguém que muito lhe referenciou durante a vida.
Não
se pode descartar também o impacto causado pelas representações construídas
sobre outra pessoa, sobretudo as idealizações, que de forma inconsciente,
acabam por afastar aspectos negativos do outro que em certa medida poderiam
gerar sofrimento. Estas idealizações podem impactar tremendamente quando na
ocorrência de uma morte, de modo que poderá dificultar o processo de aceitação
e na mobilização de elementos que façam com que a vida continue na ausência
desta outra pessoa. Desta forma, é preciso dizer que o modo como são
construídas determinadas relações refletirá muito no enfrentamento e na
compreensão da morte. É inegável que muitos falecimentos soam como alívio para
muitas pessoas. Nestes casos a morte representa o fim de sofrimentos e outros
diversos sentimentos ruins gerados por outra pessoa. Entende-se então, que a
morte não deve ser vista apenas como um elemento negativo, capaz de gerar
apenas o sofrimento. Muitas das vezes a ausência de alguém pode significar a
abertura de novos horizontes e possibilidades para os indivíduos que se
relacionavam com este.
De modo geral a morte está ligada a
um enfrentamento doloroso quando se analisa relações mais simbióticas e mais
dependentes. Muitas das perdas são
encaradas de forma negativa, mobilizando sentimentos que negam a realidade e
tornam mais dolorosas as novas tentativas de mudança. Nota-se muitos
comportamentos de fuga, que tendem a atrasar a adaptação a nova realidade. O
mesmo acontece para o indivíduo que sente sua morte próxima, muitas vezes por
diagnósticos médicos que tenham maus prognósticos. Nestas condições os
enfrentamentos são diversos e únicos, há quem se volte contra todos e contra o
mundo e há quem tente lidar de forma saudável com a nova realidade. Outra
parcela também afetada é a família, que após diagnósticos difíceis passam a
lidar com a incerteza do dia seguinte e a impossibilidade da realização de
planos e idealizações.
E dentre as excentricidades de cada
individuo, outro aspecto de fundamental importância gira em torno dos elementos
culturais, das práticas religiosas, da concepção de mundo e de homem e das
crenças que cada indivíduo possui. Todos esses elementos influenciam na
construção do repertório comportamental de cada ser humano, garantindo a
idiossincrasia de cada um. E toda esta individualidade torna mais complexa e
estende ainda mais a tentativa de compreender a morte. Aspectos religiosos
muitas vezes favorecem a partida de uma pessoa por oferecer a concepção de que
a alma encontrará a salvação ou o caminho da luz; ao passo que também torna
penosa por dar margens à possibilidade de uma condenação, fazendo referência ao
inferno. Outras crenças dão subsídio e sustentam o indivíduo que sofre,
alegando que o que aconteceu fora a melhor opção, pois alguma entidade divina a
escolheu. Entre outras explicações e discussões acerca destas práticas, pode-se
dizer que estes elementos influenciam diretamente tanto no modo como lidar com
a morte do outro, como também no entendimento da própria finitude. Por isso,
compreende-se que o modo como o indivíduo lida com frustrações e perdas impacta
diretamente em seu enfrentamento da morte.
E nesse sentido, é extremamente
ousado dizer que a morte não acontece somente da forma tradicional que se
prega: ausência de batimentos cardíacos, velório e sepultamento. A morte pode
acontecer também em vida, quando um ser humano é acometido por uma doença que
lhe torne extremamente incapaz de interagir com o mundo e com os outros. Esta
realidade é geradora de muita ansiedade, pois torna os familiares incapazes de
reverter o quadro clínico, além de mobilizar diferentes sentimentos diante da
possibilidade de favorecer a morte natural do outro, quando no desligamento de
aparelhos mantenedores da vida. Muitas destas doenças causam a perda de
elementos da identidade, tornam o doente dependente e necessitado do outro,
excluindo suas vontades e individualidades. Perdas de memória, demência,
transtornos psicológicos, entre outras patologias podem ser produtoras desta
anulação em vida, e muito fazem sofrer.
Como dito, o desenvolvimento da vida
humana tem um ponto previsível e culminará para todos neste mesmo ponto. O
envelhecimento aponta um declínio de diversas habilidades e eficiências, bem
como mudanças corporais, motoras, comportamentais e reconfigura a influência na
sociedade. Todas estas mudanças aproximam do ser humano a noção de finitude e
torna mais recorrente os pensamentos acerca da morte. O indivíduo que envelhece
passa a realizar inúmeras avaliações, executa diversos julgamentos, aspectos
que podem gerar sentimentos de insatisfação e arrependimentos. As benfeitorias
são avaliadas, bem como as produções que deixou durante toda sua trajetória.
Todos esses elementos também corroboram uma negativa visão da morte ou
influenciam na ideia de que a morte é uma boa opção, visto que na velhice não
terá as mesmas funções que anteriormente. Neste sentido, entende-se que o
envelhecimento também favorece o pensamento sobre a noção de finitude, pois a
torna mais próxima da realidade deste indivíduo.
E por mais que sejam discutidos
diferentes elementos, a morte é e ainda será uma dos fenômenos mais inexatos da
vida humana. Extremamente contraditória e inesperada, ela pode ser instigante e
amedrontadora. Entretanto, é importante que seja discutida a partir de diferentes
óticas, a fim de que sejam levantadas hipóteses e concepções capazes de
beneficiar a vida. Muitos dos comportamentos frente à morte não podem ser
previsíveis, por vezes são extremamente impensados, para tanto é interessante
que se compreenda a construção do repertório comportamental de cada um. Como as
frustrações são enfrentadas? Como o manejo de situações difíceis é conduzido?
Quais são os arranjos possíveis para que a vida continue em detrimento do outro
que se foi? Como lida com as limitações pessoais? O que o outro lhe representa?
E,
sobretudo, como continuar?
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